A conversa sobre a natureza humana sempre bate a nossa porta. Não é pra menos: ligamos a TV e as notícias se resumem a guerra política sangue derramado e censura intelectual. Os humanos, embora imperfeitos, são criaturas essencialmente gentis, sensatas e de boa índole? Ou estamos, no fundo, programados para ser maus, ambiciosos, cegos, ociosos, vaidosos, vingativos e egoístas?
Adolf Hitler tinha uma personalidade amigável, era vegetariano, defensor dos animais e quando perdeu seu cachorro quase não parou de chorar. Pol Pot, o líder do Cambodia que com suas políticas matou 1/4 do seu país, tinha voz gentil e era um calmo professor de história, geografia, literatura francesa e moral. Joseph Stalin, quando foi preso, nunca gritou ou chingou e era impressionantemente calmo. Estes homens, que são considerados inerentemente maus, possuem um lado gentil, que mostram que não somos somente a espécie mais inteligente: temos uma tendência moral complexa e muitas vezes usamos isso para moldar nossos objetivos e metas.
A natureza humana e sua influência
Para tomar algum partido nessa discussão, precisamos entender o que é a natureza humana e se ela indica alguma coisa do que vamos ser no futuro. A natureza humana faz referência ao conjunto de traços diferentes — incluindo maneiras de pensar, sentir ou agir - que os seres humanos tendem a ter, independente da influência da cultura. Por exemplo, o livre arbítrio e criação de regras morais (não matarás!). E a partir da natureza humana é que entramos em contato com uma sociedade, nos moldando ao que ela nos impõe. É certo que, dos filósofos mais antigos até a mesinha de bar, sempre vão haver ideias divergentes.
Para situarmos nossa exposição de ideias, traremos três dos filósofos mais importantes de todos os tempos: John Locke, Friedrich Nietzsche e Edward O. Wilson (que esteve vivo até ano passado). Todos eles abordam o assunto através da metafísica, cada qual com seus pontos de vista acerca da natureza humana. Começando por ordem cronológica, Locke foi um filósofo contratualista que negou que teríamos ideias prontas ao nascer (inatas) e afirmou que todos nascemos como folhas em branco, nos desenvolvendo conforme fossemos nos tornando sociáveis, isto é, assinássemos o contrato social para continuarmos livres e não prejudicar os outros. Já Nietzsche (pronuncia-se ni-tchê) traz a ideia de que os valores não são verdades divinas imutáveis e sim criados por nós, portanto dependentes do tempo e do espaço em que se manifestam. Para ele, preferimos viver em uma espécia de “ilusão consciente” (WISCHKE, 2005) do que na nossa própria realidade e nessa reflexão nos propõe que o conhecimento não passa de uma interpretação, não sento uma explicação da realidade, atribuindo sentido a uma escala de valores que se quer promover (ARANHA, 1993). E por último, E. O. Wilson, traz uma visão mais recente ao assunto, devido ao uso da neurobiologia. Segundo ele, a natureza humana é um conjunto de padrões genéticos de desenvolvimento mental que nos faz ter apreço pela arte, ter fé em deus ou até mesmo o tabu pelo incesto (efeito Westermarck). Existe de fato o mal, ou apenas seguimos nossa genética?
Imagem 1: "Good or Evil" colocados de forma a mostrar dois lados da mesma moeda.
Um alcance moral complexo
Para aprofundar a reflexão, é preciso pensar no alcance moral que nos faz humanos, desde a crueldade indescritível até a generosidade de partir o coração. De uma perspectiva biológica, tal diversidade apresenta um problema não resolvido. Se evoluímos para ser bons, por que também somos tão vis? Ou se evoluímos para ser perversos, como também podemos ser tão benignos? A combinação do bem e do mal humano não é um produto da modernidade. A julgar pelo comportamento de nossos ancestrais recentes e pelos registros da arqueologia, por centenas de milhares de anos as pessoas compartilharam alimentos, dividiram seu trabalho e ajudaram os necessitados. Nossos ancestrais do Pleistoceno eram, em muitos aspectos, completamente tolerantes e pacíficos. No entanto, as mesmas fontes de evidência também indicam que nossos antepassados praticavam invasões, domínio sexual, tortura e execuções com variedades de crueldade que eram tão abomináveis quanto qualquer prática nazista. Certamente, hoje em dia, a capacidade de grande crueldade e violência não é particular a nenhum grupo. Por várias razões, alguém pode ter experimentado uma paz excepcional por décadas, assim como outra sociedade pode ter sofrido espasmos de violência. Mas isso não sugere diferenças na psicologia inata das pessoas ao longo do tempo e do mundo. Em todos os lugares, os humanos parecem ter a mesma propensão tanto para a virtude quanto para a violência.
Os bebês também possuem um comportamento contraditório. Por vezes, antes que possam falar, eles sorriem e riem e até ajudam um adulto que precisa de algo e em outras, no entanto, esses mesmos bebês de grande coração gritarão e se enfurecerão com sublime egocentrismo para conseguir o que querem.
O processo de seleção natural
Há uma saída desse pântano sobre a natureza fundamental dos humanos. Em vez de precisar provar que qualquer um dos lados está errado, devemos perguntar se o debate faz sentido. Os bebês nos apontam na direção certa: potencial para o bem e o mal ocorre em cada indivíduo. Nossa biologia determina os aspectos contraditórios de nossas personalidades, e a sociedade modifica ambas as tendências. Nossa bondade pode ser intensificada ou corrompida, assim como nosso egoísmo pode ser exagerado ou reduzido. Uma vez que reconhecemos que somos ao mesmo tempo bons e maus por natureza, o velho argumento estéril dá lugar a novos problemas fascinantes.
Qual a razão da nossa complexa combinação de tendências comportamentais? Sabemos pelo estudo de outras espécies, principalmente aves e mamíferos, que a seleção natural pode favorecer uma ampla gama de inclinações. Algumas espécies são relativamente pouco competitivas, algumas relativamente agressivas, algumas ambas, outras nenhuma. A combinação que torna os humanos estranhos é que ambos somos intensamente calmos em nossas interações sociais normais e, ainda assim, em algumas circunstâncias, tão agressivos que matamos prontamente.
Existem também variações no comportamento humano devido à cultura. Sociedades pacíficas, outras violetas, regras rígidas sobre o comportamento sexual, enquanto outros são negligentes. A diversidade pode parecer tão esmagadora que torna a uniformidade irrelevante para comparação com outras espécies. Após um levantamento detalhado do comportamento dos caçadores-coletores, o antropólogo Robert Kelly abandonou a noção de que o comportamento humano pode ser caracterizado como tendo qualquer forma particular. “Não existe uma sociedade humana original, nenhuma adaptação humana básica”, escreveu ele em 1995. “Comportamentos universais... Nunca existiu."
Com outras espécies, compartilhamos sorrisos, caretas, e alguns aspectos-chave com algumas, como por exemplo, os chimpanzés e bonobos. Mas comparar suas origens para explicar comportamentos humanos não é muito útil. Richard Wrangham, em seu livro "The goodness paradox", propões que ao passo que o humano é extremamente pacífico em momentos, e em outros o mais violento dos primatas é porque passou por um processo de a autodomesticação. Neste livro, conta que a maior capacidade de cooperação entre humanos levou a uma sociedade que abominava machos alfa, banindo ou mesmo eliminando aqueles que se mostravam excessivamente dominantes. Não apenas seus genes foram excluídos do pool como os próprios indivíduos passaram a pensar duas vezes antes de agir de forma que parecesse muito egoísta. E foi assim que nasceu a moral, e o resto, foi construído socialmente, com base nos objetivos coletivos e benefícios da comunidade.
Referências bibliográficas
- SOUSA, Luiz Henrique da Cruz. A propriedade como direito natural na filosofia política de John Locke: Subjetividade como fundamento de uma teoria da apropriação.LINK Dissertação (Mestrado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade de Brasília, Brasília-DF, 2018.
- WRANGHAM, Richard. The Goodness Paradox: How Evolution Made Us Both More and Less Violent. Profile Books, 2019.
- ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.
- WISCHKE, M. (2005). O tecido quebradiço das ilusões: Nietzsche sobre a origem da arte e da linguagem. Em Kriterion: Revista de Filosofia (Vol. 46, Issue 111, p. 29–43).
Dicas de leitura
- Desperte o gigante interior - Anthony Robins (Fala sobre neurolinguística e PNL, com uma abordagem de auto-ajuda).
- O gene altruista - Atahualpa Fernandez (Dissertação sobre a relação da moral com a seleção natural, com ênfase em Darwin, Altruísmo e códigos de moral e ética).
- Consiliência - A unidade do conhecimento - E. O. Wilson (Discussão sobre a união das ciências em prol da obtenção de respostas sobre a natureza humana).
- The Goodness Paradox - Richard Wrangham.